Me vem uma ânsia, uma falta de escrever mas ando sem assunto. A rotina tomou forma, crepioca com café de manhã, frango com legumes no almoço, fruta a tarde e o que tiver sobrado pra janta. A mesma vida todos os dias. Que bom, que benção. Mas algo em mim se sente aflito, não é normal que as coisas aconteçam de forma fluída na minha vida. Nos meus ouvidos não tem mais o alarme de desastre, não preciso estar alerta, desconfiada, ressabiada. Não tem motivo. Depois de tanto tempo de tensão, de contravenção, de maluquice, de fingir não ver, os problemas são comuns, fáceis de resolver, saudáveis. Não é uma reclamação, só é novo e consigo sentir meu corpo sentindo falta, buscando confusão, me contradizendo, inventando histórias que não existem só pra me sentir normal. “Normal”.
Bagunça do caraio que é viver.
Você é uma música do Hozier.
Queria escrever sobre você. Algo que te fizesse entender o que bate aqui dentro. Mas não consigo, comecei esse texto três vezes e nada parece certo. Quero colar meu coração no teclado que deixar que ele mesmo diga, que com cada batida ele traga uma nova palavra e outra e outra e que nasça uma nova linguagem capaz de dizer o que quero dizer.
Que seu corpo entrelaçado no meu é certo. Que o sol iluminando seu rosto deixa seus olhos ainda mais lindos. Que toda manhã que você precisa ir é um desespero para que volte de novo. E isso é novo. Quer dizer, não é novo, eu sabia que existia, eu sabia que tava guardado em algum lugar, mas deixar sair assim, não ter medo mais, isso é novo.E eu uso vírgulas demais pq não sei como escrever, não sei como dizer, não sei como pontuar.
Quero segurar meu coração na mão e deixar que ele grite seu nome, que ganhe o espaço que tanto procura para caber tudo o que é seu, pra te entregar todo o meu presente, deixar chegar o futuro.
Dama de copas
E no final do nosso dia choveu, como tende a acontecer depois que o sol machuca nossa pele. Choveu como um pedido de desculpas pelo passado e uma limpeza pro futuro.
Poucas coisas são perfeitamente desenhadas quanto as linhas que formam seu nariz ou a mistura de cores que desaguam nos seus olhos.
Sinto meu peito cheio de coisas que quero te entregar, te mostrar, ao mesmo tempo que não tem coragem de levantar da cama quando te sinto do outro lado.
Poucas coisa se encaixam tão perfeitamente bem quando meu corpo no seu, a sua piada no meu riso, o começo do meu nome e o final do seu.
Que besteira a minha duvidar que você existia.
Devagarinho você vai esculpindo um passarinho na madeira do meu coração.
Febril
A gente mal tinha aberto os olhos e eu já decidi que seria a última vez. As mãos sujas de sangue contornavam o corpo solitário na banheira. Coloco a culpa nos seus olhos quando sei que os responsáveis são minhas mãos. Veja bem, você me pede meio que como quase sem querer com esses , e eu digo que não, que de novo não, e que não, e que vai ser diferente e que nunca mais. Esses malditos olhos.
Você aprendeu como costurar os pedaços abertos, completando os espaços entre os pontos com areia e água. Se isso não é maldição, só pode ser destino. “Mato e morro” não deveria ser uma promessa, era uma frase solta, uma expressão para encapsular um sentimento forte demais. A gente tende a ligar o forte demais com o fim de uma vida. Que não a sua! Que não a minha!
Não existe absolvição, eu cumpro seus caprichos como se não fossem nada. Mais uma mancha, mais uma banheira, mais um fim. Do quê? De quem? Já não importa o nome, o motivo mesquinho, a história torta sem pé nem cabeça que vai sair dessa boca. Na verdade, não é que não importa. É que não faz diferença quando o final não muda.
Você pede e eu faço, você chora e eu cavo, você ri e eu entrelaço. No fim não tem o que não eu faria para continuar a beijar a pele que despenca dos seus lábios.
2023
A rejeição arde.
De manhã
Você me abraçou como se quisesse entrelaçar nossas costelas.
Pensei na primavera.
O muito não me cabe. O desespero disfarçado de excesso, de essência, a busca incessante pela conquista a qualquer custo. Não importa quem está do outro lado da mesa: eu, ela, ele. Não é a mim, é a sensação de apaziguar uma carência, tampar um buraco, a necessidade do convívio em sociedade que não tem absolutamente nada a ver comigo. Sou inteira mesmo que armada. Não sou troféu de ninguém.
O pouco não me cabe. A indiferença disfarçada de plenitude, educação confundida com emoção, querer o outro bem não é sinônimo de amor é o que te diferencia da brutalidade do resto. Quero poesias, músicas, risadas, piadas de senso duvidoso, que você venha livre e assim permaneça mas que não finja, não se esforce para ficar. Não sou a compaixão de ninguém.
Eu falo, repito, tatuo, atuo e escrevo: o simples é o que mais me derruba. Simples não quer dizer morno, me encanta queimar. Simples quer dizer exatamente o que está escrito mas eu falo, explico, contextualizo e o simples se torna complicado. Não sou a expectativa de ninguém.
Por algum motivo sou romântica, insisto, persisto e deixo vir.
O vazio não me cabe. Sou inteira em cada coisa, no meio da multidão, no caminho pra casa, na inspiração, na mesa do bar. Tenho medo mas não me seguro. Sou minha própria esperança. Em casa me busco na rua me entrego, sorrio pra lua e corro com os meus. Deixo vir. Sou meu próprio universo.
João de Barro
João achava que sabia de tudo. Que era único. Sabia a hora que o ônibus passava, a última notícia do jornal, a sua música favorita, seu medo mais infantil. E de tanto saber tudo achava que se escondia do mundo. De todo mundo, no caso. Se achava que tão querido, tão divertido, tão esquisitamente diferente que seria coroado, resguardado, protegido.
Mas não foi. Tipos como João nunca são. Quando alguém acha que sabe demais, que decodificou o mundo, reescreveu o futuro, tem sempre alguém que vê de fora. E o que João acha que esconde todo mundo sabe. E o que tudo mundo sabe não é o que João diz.
Dia desses, ele estava pensando em todas as coisas que ainda não vieram, as estradas compartilhadas, as ruas mal iluminadas, sua mãe na cozinha fazendo salada, seu pai na sala vendo o jogo, seu irmão na rua fumando um cigarro. Estava tão crente que crer que sabia bastava, que imaginava os próximos passos de todo mundo e, quando errava, dava chilique, chorava, fazia dar certo. Não respondia, desaparecia, falava errado o horário do ônibus só pra controlar cada pequena certeza que havia criado.
João é feito de barro com ninho de forno, vai assando devagar até ser obrigado a levantar voo. E disso todo mundo sabia e ninguém questionava.
Mas deveria.
Papo de meio dia
– Acho que não é pra mim.
– O que?
– O amor.
– Ué, do nada?
– Nunca é do nada, né? Normalmente quando a gente fala essas coisas é pq já pensa há algum tempo e aí fica pensando tanto que uma hora só escapa, como se quisesse que alguém negasse o que a gente já sabe.
– Você quer que eu negue?
– Não sei. Você quer negar?
– Sei lá, tô comendo macarrão.
– É isso.
– Não me leve a mal, você sempre vem com esse papo como se amar não fosse o que te mantém viva. O viver, o querer viver. Romeu, Mercutio.
– Mesmo assim, não quer dizer que seja pra mim. Tem macarrão na sua camisa.
– Droga.
– Relaxa. Normal. O que não é normal é sempre dar errado. De uma forma ou de outra o que era pra ser chama sempre vira cicatriz.
– Cicatriz sempre gera histórias.
– E eu lá sou escritora pra ficar inventando história?
– Ora, me parece que sim.
– Tem molho no seu queixo.
– Onde?
– Mentira.
– Tem uma cicatriz no seu peito.
– Onde?
– Embaixo da camisa.
– Tira sarro mesmo. O que falta no mundo é gente que acredita que não acreditar vai fazer acontecer. Sabia que quando eu era criança, eu lembro muito bem, olhei pro espelho e perguntei se alguém um dia iria gostar de mim.
– E aí?
– Aí, no dia seguinte, pediram pra ficar comigo!
– Mas isso não quer dizer que a pessoa gostava de você.
– E não gostava mesmo.
– Aí você me perdeu.
– Mas poderia, entende?
– Não muito.
– Enfim, acho que não é pra mim.
– O amor?
– Não. Macarrão. O amor foi feito exatamente pra mim, só se perdeu um pouco no caminho.