Recomeço 

Você me apresentou as crises existenciais.

Sabe, meu psiquiatra ama o jeito que você entrou – e deixou – minha vida.

Foi dramático demais para ser verdade.

Minha história favorita é a de quando nos conhecemos. Lembra? Naquele bar imundo?

E fui eu quem decidi que seríamos dois.

Te encarei porque queria causar desconforto ou qualquer coisa que fizesse você perceber que eu estava ali.

Até hoje lembro do susto que tomei quando você sorriu, o calor percorreu meu corpo como se eu tivesse te reconhecido de algum outro lugar.

Tive vontade de ficar.

E acabei ficando.

Vê-lo partir não foi tão fácil quanto querer que partisse, sabe?

Enche meu copo aí, valeu.

Tudo desandou como as coisas tendem a desandar.

Aquele bar virou nosso lugar favorito de gritar um com o outro.

Lembra?

“Amores violentos têm fins violentos” já dizia Shakespeare.

Deixa pra lá, não sei explicar.

Não é drama, é?

Mas fala sério, você lembra? Do bar?

Você achava engraçado esse meu jeito todo largado que fala o que pensa, que sente o que não quer e que grita para todo lado, exigindo que o mundo se abria só para mim.

E abre! Não abre?

(Abre sim.)

Cala a boca.

Sabe, era para você pra ser alguém. Mesmo quando debochei daquele buquê do tamanho da  Amazôna, álias, alguém do greenpeace deveria ter te impedido de chegar na minha casa.

O porteiro deveria ter impedido que você dissesse meu nome.

Você deveria ter impedido que eu me entregasse.

Não, desculpa, a culpa não é sua.

É uma bela merda.

E é uma pena.

Obrigada, a gente se vê.

Eu sentia meu corpo voando pelo espaço, pelo tempo. Via você, via minha mãe, via aquela mesa de bar, viaseu sorriso, rodando, rodando, algo quente descendo pela minha testa, vermelho, via você, via você, rodando, via minha mãe, via meus avós, via minhas risadas, via minhas saudades, vermelho, vermelho, via você, vi domingos, via felicidade, via lágrimas, vidro, vermelho, silêncio. O resto era só silêncio. Só lembro do branco, do teto, do lençol, do chão.

Foi como renascer, sem clichê, sem citação de livro de auto-ajuda.

O branco do recomeço.

É tudo consequência de viver, sabe?

A gente vive para perder: nós mesmos, o amor, a vida, as flores.

Fui eu quem apagou todas as velas.

A gente se vê por aí.

Numa outra vida, num outro bar.

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