Autor: Gabriela Bonavita
Parte
Às vezes você aparece na fila do metrô
No meio de uma fórmula de excel
Naquela frase daquela série
Na sessão nostalgia do rádio.
E me derruba.
Os pés congelam no chão, as pessoas passam apressadas
Nossa história na minha cabeça
Do começo ao fim
Como um flashback de guerra
Às vezes você aparece e tudo dói
Todas as coisas que não gritei
Que calei
Rodam no copo de café
Assombração
Dependendo do dia a memória é boa
Dependendo do dia, destrói.
Me deixa arisca
As cicatrizes ardem
E eu me calo no sofá
Às vezes você parece na minha voz
Nos meus julgamentos
Nos meus ataques de fúria
Nunca vou te esquecer
Mas gostaria.
Mulher Decidida
Tudo se fechava em mim.
O quarto com suas paredes brancas, o mundo com seus olhos brancos, as suas mãos em minha face.
Hoje faz 3 meses que você arrumou as malas e correu.
Nem trancou a porta de casa, nem trancou a porta dos olhos. Se fechou com o zíper enferrujado da sua mala velha e bateu a porta.
Imbecil.
Se você soubesse o peso que tirou das minhas costas.
Todas as suas reclamações, seu temperamento idiota, suas flores mortas no vaso, a cobrança.
Eu te odeio.
Mentira.
Encho o copo.
Se soubesse a vida que tirou das minhas costas.
Seu sorriso, suas mãos, as flores vivas na nossa cama.
Eu te odeio.
Sem nenhuma explicação, uma desculpa barata, um nada.
Esvazio o corpo.
De mim tudo se foi: levou o dinheiro, o carro, o apartamento e a vontade.
O olhar dos outros: de pena, de coitada, as saídas piedosas.
A merda da nossa cama que não consegui jogar fora.
Bebi todas as garrafas que tinha no armário, usei o resto da cocaína que comprei na semana que você foi embora e sai correndo.
Pela casa, pela memória, para o nada. Escancarei a porta e encarei o vazio que me esperava. Corri pelos corredores do prédio.
É sempre silencioso em janeiro quando as famílias patéticas viajam para suas casas de praia imundas, tentando esquecer que não se amam tanto quanto nas fotografias.
Peguei o machado que deveria ser usado em caso de incêndio.
O primeiro golpe foi o mais difícil, a porta reabriu a cicatriz que eu era.
Depois a geladeira, o micro-ondas, o sofá, a TV, os armários e o caminho todo até o quarto.
Parei na porta.
Tudo rodava, encostei na parede e senti a casa derretendo.
Até a alma
D
E
R
R
E
T
I
A
Cuspi na cama enquanto ela me chamava de idiota, de burra, de gorda e de puta.
O machado desembestou a rasgar tudo: espuma, penas, cobertores, ódio, ódio, ódio!
O passado estraçalhava e o armário sangrava junto com as roupas que eu rasgava.
Fui até a cozinha e trouxe uma garrafa de álcool. Espalhei pela cama inteira, só para ver se ela ainda lembra do calor de outrora.
Lembrei de uma coisa: A gaveta do criado-mudo.
A arma e o distintivo.
Nunca vi um policial mais escroto que esse.
Acariciei a arma como fazem os amantes em lua de mel.
Fui até a sala encarar nosso porta-retratos, a porta escancarada.
As lágrimas me faziam mulher crescida, a arma me fez uma mulher decidida.
Primeiro atirei em nossa foto, só para sentir o gatilho.
Desabei no sofá, a casa rodava, as fotos rodavam, o furo na parede, o sofá, as paredes, as fotos, a cama, o cheiro de álcool, o sofá, as fotos, o furo na parede.
Tem gente na porta.
Não mexi um músculo.
Tem gente na porta.
É a hora, Tereza, é agora!
Tem gente na porta.
“Tereza? Não dá mais pra adiar, eu tenho que pegar meu distin…que diabo você tá fazendo agora? O que aconteceu aqui?”
Sentei no sofá, de frente para ele. Meus olhos estão embaçados e tudo roda. Só vejo um vulto. Coloquei a arma na cabeça.
“Tereza, para com brincadeira idiota.”
“CALA BOCA, SEU MONTE DE MERDA! CALA BOCA!”
Bem no meio da testa.
Quem diria que o tiro seria certeiro?
Desgraçado.
Vomitei, mas não foi de nojo, foi de alívio.
Andei até ele. O sangue no chão, no piso branco, em seu rosto, no tapete, em minhas mãos.
O beijei com ternura, ele sempre foi lindo.
Tirei sua camisa e a vesti como fazia antes, deitando em seu peito nu.
Caminhei até o nosso quarto, deitei na nossa cama, o perfume dele em mim.
Acendi o isqueiro.
Nosso amor virou o fogo que queimou o prédio inteiro.
Maria do Socorro
Lembro como se fosse ontem do passarinho que entrou pela janela e atravessou a cozinha como se pertencesse ali.
Passou rasante sobre a mesa ameaçando o seu vaso preferido e foi embora como se não fosse doer.
Ao mesmo tempo, o telefone tocou.
Meu coração sentiu cada chamada.
Você também foi embora.
No dia choveu como não chovia há dias.
Eu chovia inteiro, cada poro do meu corpo se transformava em tempestade, raios nas pontas dos dedos cada vez que te tocava.
É como se você tivesse tomando um banho com a água gelada que batia lá fora.
O mundo agora te envolve em um manto de renda.
Levei o seu vaso de orquídea preferido no vasinho preto de plástico que ela sempre viveu. Minhas mãos parecem grandes demais, eu pareço grande demais.
“Queria que tivesse sido eu a levantar voo”
De vez em quando a minha memória era solidária a minha dor e me fazia esquecer o real motivo de toda essa gente estar me doando sentimentos.
É egoísta pensar que eu quem deveria ter ido porque aí você é quem sofreria.
E eu não machuco passarinhos.
Uma vida toda guardada em uma caixa de madeira.
Fadada ao meu esquecimento.
A única certeza que a gente tem é triste.
Como dizia, no dia chovia.
Mas no momento em que o mundo abriu os braços para o seu descanso, o céu foi sonoro.
Mais de dez pássaros vieram te ensinar a viver lá de cima.
Olhando em volta, todos os meus amigos estão com os cabelos brancos.
Agora é só questão de tempo até o manto do mundo vir cobrar suas dívidas.
Suas saudades.
Suas vontades.
Sua voz.
Amém.
Storms are named after people.
Olhar para você me bastava.
Tanto que nem via as cicatrizes que vejo hoje.
O desespero da culpa quando ela não existe.
Você fez tanto estrago e acho que nem sabe.
Prefiro acreditar que não saiba.
Que não foi pensando.
Que não foi calculado.
Eu te desejo o bem.
Apesar das minhas crises tão bem alimentadas,
A pesar.
Pelo menos eu sei de onde veio,
As lembranças me alcançaram hoje de manhã.
Eu te desejo o bem,
Mesmo que o seu mal tenha me marcado.
Toda tempestade destrói ao mesmo tempo que rega.
Quem?
Foi você quem disse que eu deveria “me resumir a minha insignificância.”
Ainda assim eu deixo deitar na minha cama todos os dias.
Você grita e grita e grita e joga um abajur contra mim.
O porteiro chama a policia e eu peço que não.
Não faz isso com ela não.
Talvez eu não mereça a sinceridade, talvez eu não mereça nada de bom.
Você ressalta o pior em mim e ainda assim eu fico.
Respiro cada palavra que você diz como se fosse oxigênio.
Porque você mentiria?
Logo para mim.
Você grita e grita e grita e joga uma panela contra mim.
O porteiro chama a policia e eu peço que não.
Não faz isso com ela não.
Diz que vai mudar,que vai melhorar, que vai na terapia e o raio que te parta.
Pelas janelas os vizinhos assistem e acham graça. Eu com esse tamanho todo?
Você com as chaves na mão grita que dessa vez vai embora de vez e eu vou morrer sozinho.
Ninguem vai me querer.
Só você.
Ninguém no mundo inteiro.
Só você.
Ninguém.
Você tem esse poder, de me amarrar no chão só com a força do pensamento.
Eu estava esperando que você fosse a merda.
E você nem existe.
É só o espelho.
Você nem existe.
Grita e grita e grita e grita.
Você tem a minha voz.
Você taca o abajur em mim com as minhas próprias mãos.
O porteiro quer chamar a policia e eu peço que não.
Não faz isso comigo não.
Eu nem existo.
Recomeço
Você me apresentou as crises existenciais.
Sabe, meu psiquiatra ama o jeito que você entrou – e deixou – minha vida.
Foi dramático demais para ser verdade.
Minha história favorita é a de quando nos conhecemos. Lembra? Naquele bar imundo?
E fui eu quem decidi que seríamos dois.
Te encarei porque queria causar desconforto ou qualquer coisa que fizesse você perceber que eu estava ali.
Até hoje lembro do susto que tomei quando você sorriu, o calor percorreu meu corpo como se eu tivesse te reconhecido de algum outro lugar.
Tive vontade de ficar.
E acabei ficando.
Vê-lo partir não foi tão fácil quanto querer que partisse, sabe?
Enche meu copo aí, valeu.
Tudo desandou como as coisas tendem a desandar.
Aquele bar virou nosso lugar favorito de gritar um com o outro.
Lembra?
“Amores violentos têm fins violentos” já dizia Shakespeare.
Deixa pra lá, não sei explicar.
Não é drama, é?
Mas fala sério, você lembra? Do bar?
Você achava engraçado esse meu jeito todo largado que fala o que pensa, que sente o que não quer e que grita para todo lado, exigindo que o mundo se abria só para mim.
E abre! Não abre?
(Abre sim.)
Cala a boca.
Sabe, era para você pra ser alguém. Mesmo quando debochei daquele buquê do tamanho da Amazôna, álias, alguém do greenpeace deveria ter te impedido de chegar na minha casa.
O porteiro deveria ter impedido que você dissesse meu nome.
Você deveria ter impedido que eu me entregasse.
Não, desculpa, a culpa não é sua.
É uma bela merda.
E é uma pena.
Obrigada, a gente se vê.
Eu sentia meu corpo voando pelo espaço, pelo tempo. Via você, via minha mãe, via aquela mesa de bar, viaseu sorriso, rodando, rodando, algo quente descendo pela minha testa, vermelho, via você, via você, rodando, via minha mãe, via meus avós, via minhas risadas, via minhas saudades, vermelho, vermelho, via você, vi domingos, via felicidade, via lágrimas, vidro, vermelho, silêncio. O resto era só silêncio. Só lembro do branco, do teto, do lençol, do chão.
Foi como renascer, sem clichê, sem citação de livro de auto-ajuda.
O branco do recomeço.
É tudo consequência de viver, sabe?
A gente vive para perder: nós mesmos, o amor, a vida, as flores.
Fui eu quem apagou todas as velas.
A gente se vê por aí.
Numa outra vida, num outro bar.
Romina
Romina é pequena e tem exatos 37 gatos.
Ela sabe o nome de todos.
Acorda todos os dias as sete da manhã.
Gosta de granola com iogurte e água de coco.
Romina é do tamanho do universo.
O mundo gira conforme ela dança
Gosta de fazer crochê e cuidar de suculentas.
Vai ao teatro e ao cinema,
As vezes,
Só pela companhia.
Romina anda perdida em suas dúvidas
Não sabe se planeja ou se analisa
E s p r e g u i ç a
Fuma e tem asma e foda-se.
Começa de novo.
Cai.
Começa de novo.
Res
pi
ra.
Romina, é uma força da natureza.
É fé, é bolo de vó
São 540 mensagens as três da manhã.
Romina é grande e gosta do mundo.
Divã
Talvez essa seja a simplicidade que você procura.
Você só não sabe.
Ou não se acostumou ainda.
Nunca fui calma mas sempre desejei a calmaria. Não que eu seja hiperativa ou algo assim, mas sinto urgência em tudo. Até no nada. Entenda bem que não é desespero, é intensidade. Sinto mais do que deveria. Sinto muito também. Por dentro é uma tempestade lascada. Tenho que preencher a cidade. Intensidade com leveza é […]