Rascunho

Me vem uma ânsia, uma falta de escrever mas ando sem assunto. A rotina tomou forma, crepioca com café de manhã, frango com legumes no almoço, fruta a tarde e o que tiver sobrado pra janta. A mesma vida todos os dias. Que bom, que benção. Mas algo em mim se sente aflito, não é normal que as coisas aconteçam de forma fluída na minha vida. Nos meus ouvidos não tem mais o alarme de desastre, não preciso estar alerta, desconfiada, ressabiada. Não tem motivo. Depois de tanto tempo de tensão, de contravenção, de maluquice, de fingir não ver, os problemas são comuns, fáceis de resolver, saudáveis. Não é uma reclamação, só é novo e consigo sentir meu corpo sentindo falta, buscando confusão, me contradizendo, inventando histórias que não existem só pra me sentir normal. “Normal”.

Bagunça do caraio que é viver.

Pensei na primavera.

O muito não me cabe. O desespero disfarçado de excesso, de essência, a busca incessante pela conquista a qualquer custo. Não importa quem está do outro lado da mesa: eu, ela, ele. Não é a mim, é a sensação de apaziguar uma carência, tampar um buraco, a necessidade do convívio em sociedade que não tem absolutamente nada a ver comigo. Sou inteira mesmo que armada. Não sou troféu de ninguém.

O pouco não me cabe. A indiferença disfarçada de plenitude, educação confundida com emoção, querer o outro bem não é sinônimo de amor é o que te diferencia da brutalidade do resto. Quero poesias, músicas, risadas, piadas de senso duvidoso, que você venha livre e assim permaneça mas que não finja, não se esforce para ficar. Não sou a compaixão de ninguém.

Eu falo, repito, tatuo, atuo e escrevo: o simples é o que mais me derruba. Simples não quer dizer morno, me encanta queimar. Simples quer dizer exatamente o que está escrito mas eu falo, explico, contextualizo e o simples se torna complicado. Não sou a expectativa de ninguém.

Por algum motivo sou romântica, insisto, persisto e deixo vir.

O vazio não me cabe. Sou inteira em cada coisa, no meio da multidão, no caminho pra casa, na inspiração, na mesa do bar. Tenho medo mas não me seguro. Sou minha própria esperança. Em casa me busco na rua me entrego, sorrio pra lua e corro com os meus. Deixo vir. Sou meu próprio universo.

João de Barro

João achava que sabia de tudo. Que era único. Sabia a hora que o ônibus passava, a última notícia do jornal, a sua música favorita, seu medo mais infantil. E de tanto saber tudo achava que se escondia do mundo. De todo mundo, no caso. Se achava que tão querido, tão divertido, tão esquisitamente diferente que seria coroado, resguardado, protegido.

Mas não foi. Tipos como João nunca são. Quando alguém acha que sabe demais, que decodificou o mundo, reescreveu o futuro, tem sempre alguém que vê de fora. E o que João acha que esconde todo mundo sabe. E o que tudo mundo sabe não é o que João diz.

Dia desses, ele estava pensando em todas as coisas que ainda não vieram, as estradas compartilhadas, as ruas mal iluminadas, sua mãe na cozinha fazendo salada, seu pai na sala vendo o jogo, seu irmão na rua fumando um cigarro. Estava tão crente que crer que sabia bastava, que imaginava os próximos passos de todo mundo e, quando errava, dava chilique, chorava, fazia dar certo. Não respondia, desaparecia, falava errado o horário do ônibus só pra controlar cada pequena certeza que havia criado.

João é feito de barro com ninho de forno, vai assando devagar até ser obrigado a levantar voo. E disso todo mundo sabia e ninguém questionava.

Mas deveria.

Papo de meio dia

– Acho que não é pra mim.
– O que?
– O amor.
– Ué, do nada?
– Nunca é do nada, né? Normalmente quando a gente fala essas coisas é pq já pensa há algum tempo e aí  fica pensando tanto que uma hora só escapa, como se quisesse que alguém negasse o que a gente já sabe.
– Você quer que eu negue?
– Não sei. Você quer negar?
– Sei lá, tô comendo macarrão.
– É isso.
– Não me leve a mal, você sempre vem com esse papo como se amar não fosse o que te mantém viva. O viver, o querer viver. Romeu, Mercutio.
– Mesmo assim, não quer dizer que seja pra mim. Tem macarrão na sua camisa.
– Droga.
– Relaxa. Normal. O que não é normal é sempre dar errado. De uma forma ou de outra o que era pra ser chama sempre vira cicatriz.
– Cicatriz sempre gera histórias.
– E eu lá sou escritora pra ficar inventando história?
– Ora, me parece que sim.
– Tem molho no seu queixo.
– Onde?
– Mentira.
– Tem uma cicatriz no seu peito.
– Onde?
– Embaixo da camisa.
– Tira sarro mesmo. O que falta no mundo é gente que acredita que não acreditar vai fazer acontecer. Sabia que quando eu era criança, eu lembro muito bem, olhei pro espelho e perguntei se alguém um dia iria gostar de mim.
– E aí?
– Aí, no dia seguinte, pediram pra ficar comigo!
– Mas isso não quer dizer que a pessoa gostava de você.
– E não gostava mesmo.
– Aí você me perdeu.
– Mas poderia, entende?
– Não muito.
– Enfim, acho que não é pra mim.
– O amor?
– Não. Macarrão. O amor foi feito exatamente pra mim, só se perdeu um pouco no caminho.

Jaula de apartamento.

Tenho mania de colocar ‘hahaha’ depois de todas as mensagens. Não sei direito o porque, pensei nisso hoje de manhã. Coloco ‘.’ para mostrar que estou brava. Como se minha escrita passiva-agressiva não fizesse isso sozinha.

Parei na janela hoje de manhã ouvindo uma cantora nova, dessas que pegam na alma. Tem um friozinho gelado batendo no coração e um monte de minhocas se revirando no meu estômago. É, minhocas. Borboleta é coisa de adolescente. Então, as minhocas. Vi em uma notícia, dessas que aparecem sei lá da onde no nosso feed, que se você alimenta-las por 30 dias seguidos com coisas saudáveis elas soltam um trequinho para misturar na terra para as plantas crescerem bonitas. Coisas saudáveis são difíceis de encontrar.

Mentira.

Eu queria borboletas.

Em dias assim, meu coração bate sete vezes mais rápido que o normal. As mãos tremem e meu rosto procura o sol. Dá um alívio por cerca de seis minutos. Dentro desse espaço tempo até que é bom mas aí volta, sabe?

Apareçam formigas aqui em casa e ainda não descobri de onde elas vem. Aparecem no sofá, no meu braço, na minha perna. Deve ser das coisas doces que abandonei por aqui buscando por coisas mais doces ainda. Elas sobem consumindo o que coloco para fora, levando para outro lugar, repassando para as outras e me deixando amarga, desacreditada, medrosa.

Do que? De tudo. Das pontas dos dedo tão geladas, da pilha de roupas em cima da minha cama, da pia cheia de louça, de te deixar entrar. De todas essas palavras que eu jogo sem revisar. É coisa que eu faço, sabe?

Invento borboletas nas costas de minhocas.

*Lockdown/2020.



Você viu onde eu guardei?

A gente finge que sabe no meio da minha sala. A vizinha grita algo mas a gente nem se incomoda, ela sempre grita. Na nossa boca vai nascendo um sorriso daqueles grandes que deixam os olhos pequeninhos, que cresce tanto que a língua foge pelos dentes.

O descompasso do nosso corpo rodando torto pela sala, me faz não sei dançar e mais de uma vez você me puxou pela cintura e disse que me ensinava. E realmente tentou, nem ligou quando tropecei sete vezes em dois minutos. A casa ficou pequena.

Você fuma um cigarro na janela como o guarda da rua. No intervalo de cada trago, me olha, como se soubesse todas minhas manias e dizia que para durar tinha que recarregar, igual bilhete único, sabe? Para seguir no caminho certo tem que ter certeza que sempre tem o suficiente.

Aí a música acabou como sempre acaba e você me conhece, toda vez que perco meu bilhete, pego um novo.

*Lockdown/2020

Coração na mão

Eu sinto em todos os meus ossos os gritos da minha cabeça

Eles escorrem pelos olhos e tudo dói

Você chegou no meio do furacão

Minha guarda tá baixa, eu ando sentindo tudo ao mesmo tempo

Na terapia, disseram que isso mesmo o que tem que acontecer. Me deixar sentir. Mas eu sinto demais.

Me culpo pq acabo me apoiando em você

Não é justo

Lembra da gente como estamos hoje

Meu pulso arde

Minha proteção se perdeu

Me entregar dá medo

Sentir da medo

Eu não tô acostumada

Sempre reprimi tudo

Lembra da gente como estamos hoje

Hoje eu lidei com tudo sozinha

E quis d e s a p a r e c e r

Não me olha.

A casa inteira caiu. Começou pelo teto, escorreu pelas paredes, sujou os armários e abriu um buraco no chão.

Ele me encarava de baixo e não era do jeito que eu costumava gostar. Suas mãos desmancharam de tijolo a tijolo toda a certeza que era só minha. Meus sentimentos se misturam no cimento do nó da sua mão na minha cara. Não. Eu não vou mentir dessa vez. Ele não me bateu. Não com as mãos, sei que se eu falar que me bateu com as palavras vai ficar parecendo um folheto daqueles poetas do masp que a gente compra por dó.

Eu não tenho mais dó de ninguém. As pessoas não são más, só estão perdidas é a puta que pariu. Eu vi de perto os olhos de fogo de quem sabe o que faz. De peito aberto a fumaça entrou e não saiu mais. Eu ainda queimo. As vezes. Depende.

É como faísca. Uma palavra, uma música, um perfume faz com que tudo se perca e eu não sei dizer mais nada. Meu rosto inteiro molhado busca a superfície.

Mas a casa caiu.

Começou pelo teto, escorreu pelas paredes, sujou os armários e me derrubou no chão.

Mas eu volto.

Não duvida não.

Não tem casa, não tem tapa, não tem fogo que tire de mim a força que minha avó me passou. A dureza que minha mãe me ensinou. A leveza da risada do meu pai e a lealdade cega do meu irmão.

Pode mexer, pode derrubar

Mas, pro seu bem, torce pra eu não voltar.

Já virou qualquer coisa

Eu tinha aqui dentro um tipo de ziquizira, parecido com um quériquéri que ia corroendo todo o meu zibiribi sem nem saber pra onde ia.
Tipo um gurigueri, sabe? Aquela coisa que arde meio qualquer coisa?
Quando você esquece o meu nome meu corpo todo se jurere, aí cê volta como quem não quer quilili e eu deixo passar
Dessa vez a ziquizira fez gira e ai de mim se ignorar, todo meu zibiribi explode e eu vou pra qualquer lugar.