Ciclo.

Minha vida se desfez, derreteu.
Escorreu. Entre as mãos. No chão. Na terra. Nas flores. Nas sombras. No mar.
E evaporou.
Voou. Subiu. Pelas estrelas. Se misturou com os balões de ar.
Virou nuvem.
E choveu. Molhou. Encharcou. Relampejou.
Minha vida renasceu, ressurgiu.
No seu sorriso. No seu abraço. No seu vestígio. No seu encalço.
E se esqueceu.
Do telefone. Do trabalho. Do horário.
E se vestiu.
De flores. De rosas. De aves.
Só para desvestir.
Para ser pura. Para ser nua. Para ser sua.
E poder sentir.
De olhos fechados.

Peito aberto e Coração livre.
A alma acordar.

Variação.

Antes do sol nascer o vento corta o meu rosto.
O café sente meu gosto.
Enquanto o dia vai me descobrindo, o dia vai buzinando.
A noite sou musicista, cantora, modelo e dançarina.
O que for agradar. O que for ajudar.
A espinha congela com um arrepio estranho.
Quatro cobertores.
Você me traz um abraço e uma mão.
Entooei.
Virei corda de coração.

Minha Augusta.

As coisas vão.
Só porque as chamo de “minha”.
As coisas ficam porque permitimos que possam ir, quando quiserem.
E sabem que podem voltar.
Quando quiserem.
O que me emputece é quando as coisas são roubadas.
Seria bonito se fosse pelo vento.
E não pela faca.
Seria bonito se fosse por um beijo.
E não pela raiva.

Amo a vida que volta.

E eu.

Do chão saíram borboletas do tamanho de dinossauros
O mundo se transformou em cores, vivas, fortes, sedentas!
Havia dois lados.
E eu no meio.
O da esquerda colorido.
O da direta era cinza, sépia, marrom e bege.
Não deixavam de se expressar.
E eu no meio.
Como se visse o nascimento de um arco-íris
Ou de um sorriso
Ou de um amor.
E eu era parte.
Parte do meio.
O cenário abraça a protagonista
Os figurantes são passarinhos
Todos dançam
E eu de frente.
Minhas mãos abraçam seu pescoço.
E eu de frente.
A cor da sua alma
A força dos seus olhos
E eu do lado.
Amarre-me em suas mãos
Voemos, então, junto às borboletas.
E eu do lado.

Foto: Gabriela Bonavita.

Pedaço de Nuvem.

A janela aberta mostra um retrato
Um quadro da alma
Passa, sem pressa
Sem pressa, derrama
A vida que escorreu dali
Saiu de um pedaço de nuvem
Cresceu no asfalto
Mas sabia que era um pedaço azul
Mantem os olhos para o alto
Esperando um sinal
Um vento, um temporal
Mas quem aparece é outro.
Olha! O sol vem gigante
Secar o que molhou
Reviver o que matou
Avisar para quem se esqueceu
Que a alma é feita de algodão.

No caminho

Engraçado como a vida revira minhas entranhas.
Com suas dúvidas tamanhas.
O não e o para que saber.
E ainda assim, o procurar saber.
Ir atrás de cada não
Mesmo na contramão.
Contrariar o trato com o fato
Manchar com tinta o seu retrato.
A gritaria das guitarras
A sujeira das palavras.
Minha alma que se espanta
Cada vez que você canta.

O sabor de todas as plantas
O perecer de todas as rimas.

Roxanne

Ela vivia do avesso, entre caras e tropeços.
E eu já não a impedia de nada.
De quarto em quarto seus olhos se apagam.
Por um bom preço, ela é toda sua.
Sua sala-de-estar, sala-de-fingir, sala-de-se-livrar.
Como um brinquedo velho, ela se esconde pelos cantos enquanto ele se veste.
Enquanto ela se esquece.
Se perde no escuro profundo das almas amarguradas.
E não acha estranho.
Chega a achar bonito se perder desse jeito.
Na hora certa ela vai embora.
E ele não vai precisar ligar de volta.

Maria Luiza

Algumas dezenas de pessoas sem nome, com vida sofrida
Vivendo, respirando, abrindo uma janela, espremidas
A criança que chora, a senhora que reclama
A vida que passa, a roda suja de lama
São 7 horas da manhã
Do dia que não nasceu.
Só passou.
Sobreviveu.
A noite a mesma história, a janta é o almoço de ontem
No jornal nenhuma novidade, a novela ninguém vive sem
Eu me peguei olhando pela janela, acho que vou pegar qualquer trem
Para disparar por cima dessa vida já sabida
Quem sabe no próximo ponto, venha uma idéia melhor.
Quem sabe na idéia melhor, venha um próximo ponto.

Terça-Feira

Abri todos os armários da casa, procurei em cima da cama e embaixo dela. Revirei a gaveta e os olhos. Eu nunca acho uma coisa quando a quero. Para melhorar, eu esqueci o que eu tanto procurava e só continuei de raiva. Desisti e fui terminar de me vestir, afinal, um ônibus lotado me chama, todas aquelas pessoas indo para o mesmo lugar…se todos os desempregados arranjarem emprego onde vão enfiar tanta gente nos ônibus?  Tá na hora de eu pegar mais o carro. Além do ônibus parecer uma micareta sem a pegação (graças a Deus) tem esse calor, esse inferno que resolveu dar uma volta por aqui, se isso continuar vou me liquefazer, certeza. E teve o motorista lerdo, que quis parar em todos os pontos e o cara bravo que gritou que ia encher o motorista de porrada se ele parasse de novo, o riso veio fácil e o estresse foi pela janela e todas aquelas pessoas que se veem e vão para os mesmos lugares todos os dias resolveram saber um pouco mais sobre as outras, ouvi histórias sobre os netos, sobre o trabalho e sobre pressão baixa. Já na faculdade encontrei aqueles que me arracam uma risada fácil com quase nada, logo depois você chegou também e de mim você já tem tudo. Comprei o ingresso para a festa do fim-de-semana só para esquecer que a vida de adulto responsável chega cada vez mais perto, só para reencontrar aquela alegria infantil em uma piada sem graça e uma cerveja gelada.

Ninguémais.

Abriu o farol e eu fiquei na faixa, não queria atravessar, nem mudar o rumo.
Quis só observar. O cinza, os carros, as pessoas que nem se olham.
E vi que a importância de quem não se importa não passa batida pelos pés daquele cara sujo sentado no ponto de ônibus.
Descobri mais tarde que ele não estava só de passagem, estava preso ali, sem bilhete, sem vontade, sem comida.
O que ele queria era só um olhar, um pisar mais perto que o percebesse. Que o notasse sem o costumeiro pedido de “Por favor retire-se.”
As buzinas começaram a me expulsar dos meus pensamentos, recomecei a andar e percebi que ele sorria pra mim e dizia que “a vida é dura menina, mas é minha…e de mais ninguém.”
De mais ninguém, repeti, enquanto sorria de volta.