Febril

A gente mal tinha aberto os olhos e eu já decidi que seria a última vez. As mãos sujas de sangue contornavam o corpo solitário na banheira. Coloco a culpa nos seus olhos quando sei que os responsáveis são minhas mãos. Veja bem, você me pede meio que como quase sem querer com esses , e eu digo que não, que de novo não, e que não, e que vai ser diferente e que nunca mais. Esses malditos olhos.

Você aprendeu como costurar os pedaços abertos, completando os espaços entre os pontos com areia e água. Se isso não é maldição, só pode ser destino. “Mato e morro” não deveria ser uma promessa, era uma frase solta, uma expressão para encapsular um sentimento forte demais. A gente tende a ligar o forte demais com o fim de uma vida. Que não a sua! Que não a minha!

Não existe absolvição, eu cumpro seus caprichos como se não fossem nada. Mais uma mancha, mais uma banheira, mais um fim. Do quê? De quem? Já não importa o nome, o motivo mesquinho, a história torta sem pé nem cabeça que vai sair dessa boca. Na verdade, não é que não importa. É que não faz diferença quando o final não muda.

Você pede e eu faço, você chora e eu cavo, você ri e eu entrelaço. No fim não tem o que não eu faria para continuar a beijar a pele que despenca dos seus lábios.

João de Barro

João achava que sabia de tudo. Que era único. Sabia a hora que o ônibus passava, a última notícia do jornal, a sua música favorita, seu medo mais infantil. E de tanto saber tudo achava que se escondia do mundo. De todo mundo, no caso. Se achava que tão querido, tão divertido, tão esquisitamente diferente que seria coroado, resguardado, protegido.

Mas não foi. Tipos como João nunca são. Quando alguém acha que sabe demais, que decodificou o mundo, reescreveu o futuro, tem sempre alguém que vê de fora. E o que João acha que esconde todo mundo sabe. E o que tudo mundo sabe não é o que João diz.

Dia desses, ele estava pensando em todas as coisas que ainda não vieram, as estradas compartilhadas, as ruas mal iluminadas, sua mãe na cozinha fazendo salada, seu pai na sala vendo o jogo, seu irmão na rua fumando um cigarro. Estava tão crente que crer que sabia bastava, que imaginava os próximos passos de todo mundo e, quando errava, dava chilique, chorava, fazia dar certo. Não respondia, desaparecia, falava errado o horário do ônibus só pra controlar cada pequena certeza que havia criado.

João é feito de barro com ninho de forno, vai assando devagar até ser obrigado a levantar voo. E disso todo mundo sabia e ninguém questionava.

Mas deveria.

Você viu onde eu guardei?

A gente finge que sabe no meio da minha sala. A vizinha grita algo mas a gente nem se incomoda, ela sempre grita. Na nossa boca vai nascendo um sorriso daqueles grandes que deixam os olhos pequeninhos, que cresce tanto que a língua foge pelos dentes.

O descompasso do nosso corpo rodando torto pela sala, me faz não sei dançar e mais de uma vez você me puxou pela cintura e disse que me ensinava. E realmente tentou, nem ligou quando tropecei sete vezes em dois minutos. A casa ficou pequena.

Você fuma um cigarro na janela como o guarda da rua. No intervalo de cada trago, me olha, como se soubesse todas minhas manias e dizia que para durar tinha que recarregar, igual bilhete único, sabe? Para seguir no caminho certo tem que ter certeza que sempre tem o suficiente.

Aí a música acabou como sempre acaba e você me conhece, toda vez que perco meu bilhete, pego um novo.

*Lockdown/2020

Menina clara.

Por cada sorriso ela ganhava um pedaço de céu.
Talvez para se arrepender ou para se prender, vai saber.
Seus olhos tão arrastados insistem em direcionar meu caminho
É tão clara que a pele transparece toda a essência e toda a beleza que meus passos, tão cuidadosamente, seguem.

Essa menina toda perdida bem que podia, por um dia, desfilar na minha avenida.
Ah, eu largaria a bandeira e abriria a porta.
Eu lembro que foi por querer que me deixei esquecer que não podia olhar para você assim, tão de perto.
Que esse tipo de intromissão não tem volta.

Ai Ana, se só dessa vez você ficar, eu monto o desfile inteiro para você dançar.
E faço que fique proibido, no mundo inteiro, o uso de máscaras.
Principalmente se for para brincar.

Manuela

Ela olha bem fundo nos olhos
Faz cara de quem não sabe, de quem tem medo
Mas é tão forte que até o céu chove quando existe algum tormento

O jeito que ela anda chama atenção, carrega uma leveza que eu não conhecia
Até então.
Ela é feita para se jogar de cabeça
Não aceita metades, nem meias verdades

O porta retrato quando para na cabeceira
É para ficar a vida inteira
Se Manuela for embora
Ah, meu amigo, eu vou atras
Vendo o carro e tudo o mais.

O céu é tudo aquilo o que você me traz.

Embaixo da ponte.

Ela é uma daquelas que não basta olhar, tem que entrar embaixo da pele.
Ela não tem título, é feita de detalhes, daqueles que formam os sonhos. Tudo o que é leve demais foge com o vento, ela fica presa entre as entrelinhas. Dentro e fora de casa. Fora e entre os dedos.
Entre meus dedos mora o cheiro do cabelo dela, agora tão meu, mais meu do que dela sou feito disso. Dela. Inteiro. Nem metade nem um terço, um inteiro. Tudo o que eu queria, nesse momento, era morar em seu cabelo, sempre tão macio e tão quente quanto seus braços. Queria um cobertor feito do seu amor, um café da manhã com o cheiro dos seus traços, uma vida inteira de detalhes que se perdem pelo espaço.

18:07

A terra se derreteu em seus braços enquanto seus olhos viravam flores, era a melhor coisa que eu já tive.
Ela é a melhor coisa.
A perdi pras borboletas e para os pássaros, essa menina feita de asas e eu sempre fui terra, molhada, com raízes que saem de mim e voltam num abraço cascudo.
‘Não adianta meu amor, você não vê? Eu nasci para comer seus frutos, me aproveitar da sua doçura e ir embora, é a minha natureza’.
‘Mas você sabia meu bem, que entre meus galhos é o lugar perfeito para montar um ninho?’
Ela repetia que agora não era a hora, justo agora não era a hora. E era assim toda primavera, quando ela chegava, eu dava mais flores do que nunca só para encanta-la, para fazê-la ficar o tempo todo.
Quanto mais flores mais carinhos, já separei os galhos perfeitos para teu ninho, mesmo que não queira, mesmo que não venha.